fonte: Folha de SP
O exame de ultrassom morfológico já estava terminando quando o bebê Enzo, ainda na barriga de Karem Simões, 31, resolveu virar um pouquinho de lado. Foi o suficiente para acender a luz amarela: o calombo no finzinho da coluna não era normal.
A gestação estava na 20ª semana, quando já é possível identificar malformações.
Não bastasse o susto, a obstetra que assistia a mãe só a deixou mais preocupada: o bebê poderia não andar, não ter controle sobre urina e fezes e ter hidrocefalia, que pode prejudicar funções como equilíbrio e respiração.
Não foi oferecida nenhuma possibilidade de remediar o caso naquele momento. Restaria esperar o bebê nascer para tratá-lo.
Depois de quatro dias de angústia e buscas na internet, Karem e seu marido, o analista de sistemas Guilherme, acharam o nome de Denise Lapa, médica especialista no tratamento do problema, chamado mielomeningocele, ainda no útero.
“Vimos crianças vegetando, sem perspectiva de futuro, mas o maior medo era o de perder meu filho”, diz Karem.
A abordagem cirúrgica da médica corrige malformações na coluna de fetos ainda no útero e aumenta a chance de a criança ter uma vida normal. A técnica ainda é experimental, mas já reúne dezenas de casos bem-sucedidos.
A mielomeningocele é consequência de uma falha de desenvolvimento na coluna. A parte de trás das vértebras, o chamado processo espinhoso, não se forma. Dependendo do número de vértebras afetadas, o interior do canal medular fica exposto.
O contato com o líquido amniótico, no qual o bebê fica imerso, prejudica os nervos, que podem parar definitivamente de conduzir estímulos elétricos, provocando prejuízos especialmente para os membros inferiores.
Denise Lapa, que trabalha no hospital Albert Einstein, tranquilizou o casal e disse que o estado de Enzo era promissor: ele mexia as perninhas e a hidrocefalia (quando há retenção de líquido no encéfalo) não era grave.
Existem diversas causas para a mielomeningocele e outras formas de espinha bífida (quando o canal medular não se fecha corretamente), como fatores genéticos, medicamentos antiepilépticos, falta de nutrientes como o ácido fólico, exposição a radiação e até mesmo cirurgia bariátrica, explica Antonio Fernandes Moron, professor titular de obstetrícia da Unifesp.
Nas duas últimas décadas Lapa tem aperfeiçoado sua técnica para tratar a malformação de coluna. A cirurgia oferece maior chance de a criança andar e reduz as possíveis complicações neurológicas, segundo a médica.
A ideia é devolver os nervos para o interior do canal medular e costurar a meninge, membrana que reveste o conteúdo do sistema nervoso central (cérebro e medula), e a pele, protegendo os nervos das agressões do meio externo.
Para os que não têm pele suficiente, Lapa e seu time criaram uma abordagem na qual entra em cena uma espécie de pele provisória, formada por uma membrana biocompatível e uma de silicone, que são costuradas sobre a região.
O grande desafio é fazer isso por meio de furinhos que atravessam a barriga da mãe, passam pelo útero e, que, por fim, chegam no bebê. A operação leva cerca de 1h30. Suas vantagens são a breve recuperação da mãe e a maior chance de o bebê poder nascer de parto normal.
Como a cirurgia não era coberta pelo convênio, Karem entrou na Justiça para que o plano bancasse o custo de R$ 145 mil. Demorou algumas semanas, mas em 30 de setembro de 2016, na 25ª semana, ela fez a cirurgia. “A barriga ficou meio mole, mas não senti dor. Operei na sexta e saí do hospital na segunda.”
Em 5 de novembro, ainda prematuro, Enzo nasceu. “E com bons pulmões”, lembra a mãe. Ele não precisou colocar dreno para tratar a hidrocefalia e hoje, aos 2 anos, tem controle da urina e das funções intestinais e anda.
Enzo está com atraso na fala, o que também pode ser efeito da prematuridade, e é acompanhado de perto por fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional. Ainda passa regularmente por neurologista, nefrologista, pediatra e ortopedista —mas nada o impede de levar uma vida feliz.
A alternativa à cirurgia minimamente invasiva é a “a céu aberto”, na qual os médicos abrem a barriga e o útero o suficiente para expor a região da coluna a ser corrigida.
Para Moron, é necessário cautela com a técnica minimamente invasiva. “Em tentativas anteriores, o resultado da fetoscopia foi ruim. A que está mais documentada e reúne mais provas de que funciona é a cirurgia a céu aberto.”
Ele considera importante que as investigações sobre novas técnicas aconteçam dentro do ambiente acadêmico. “Quando ela sai para o nível assistencial e comercial, há um ‘gap’. É importante oferecer ao público só depois que for provado o benefício real.”
Lapa diz que a nova cirurgia já é estudada em outros países, como Israel, Chile, EUA, Inglaterra e Itália e tende a se tornar padrão.
Um grupo do Instituto Fernandes Figueira, ligado à Fiocruz, no Rio, também estuda uma maneira de fazer
cirurgias minimamente invasivas em fetos.
Na última semana, foi realizada a primeira do tipo, em colaboração com o time de Lapa. Os resultados estão dentro do esperado, relata Paulo Nassar, que encabeça a iniciativa, apoiada pelo Instituto Serrapilheira. A ideia é adquirir expertise e equipar o Instituto Fernandes Figueira para oferecer a alternativa via SUS.